A crise da Covid-19, o caos e o ano pós-reforma da previdência
Verdadeiramente uma jornada a ser esquecida, sob diversos sentidos e olhares. 2020, o ano pandêmico e também o primeiro ano pós-reforma da previdência, em que pouco ou infimamente há algo para ser comemorado e registrado.
Aqui, uma breve reflexão sobre o legado previdenciário de 2020 concomitantemente ao vírus global que ainda percorre e assola o dia a dia da sociedade, de todas, inclusive, dos mais ricos aos mais pobres, dos trabalhadores e dos empresários, dos agentes políticos e de seus representados.
Principiou o ano com as nebulosas e confusas regras da denominada “nova previdência”, advinda com a publicação oficial da Emenda Constitucional nº 103, de 13/11/2019, contendo cinco regras de transição para os trabalhadores do regime geral e duas para os servidores efetivos dos regimes próprios.
Registre-se, inclusive, que sequer os servidores do próprio INSS foram treinados e equipados a respeito, amostra clara de que a “nova previdência” surgiu a destempo e sem os debates necessários que se esperavam e naturais das grandes reformas de políticas fundantes do Estado [1].
E o cenário até então agravado pelo novo modelo reformador notadamente agravou ainda mais o caótico quadro previdenciário, com filas e filas; inoperância do sistema; expressiva baixa dos servidores, uma crescente judicialização; a alternância da presidência do INSS; novas leis etc.
Portanto, pelo início de 2020, pouco há de se comemorar ou registrar de forma positiva, otimista e esperançosa.
Decorridos os primeiros meses de nascimento da EC nº 103/2019, surgiram diversas portarias internas, instruções normativas, circulares, orientações, recomendações e novos diplomas legais, como se o sistema previdenciário já não tivesse um contundente número de leis e decretos.
Alteraram-se, assim, não unicamente as bases constitucionais que deram ensejo ao novo modelo aprovado pelo sistema político bicameral, ainda que de forma açodada e atécnica, mas também expressiva legislação previdenciária federal correlata, como a Lei 8.213/1991 e o Decreto 3.048/1999, por exemplo, modificados em grande essência.
Curiosamente, também as prestações previdenciárias ganharam outros formatos e outras identidades, contudo, a legislação ainda continuava pretérita, sem adequação a diversos contornos, criando, assim, discussões acadêmicas a respeito.
Longe aqui de realizar articuladamente os pormenores das novidades, aliás, que não são poucas, contudo, criticamente destacar que suas promessas fundantes, no mínimo, não se cumpriram até agora.
É que o discurso que moveu os passos reformadores em todos os momentos efusivamente apregoou um novo modelo, justo, equilibrado, equânime, acessível e social [2].
Promessas alardeadas a quatro ventos e vazias de conteúdo, até então.
De outro lado, o sistema, sim, funcionou e a passos largos, notadamente para colocar em revisão prestações previdenciárias específicas e envidar operações para aferir a necessidade de validação e manutenção de benefícios, por exemplo, as fases e fases da conhecida operação “pente fino”, em nítido discurso arrecadador e restritivo na contramão das aspirações constitucionais firmadas no horizonte de 1988 em que se espera, no mínimo, alterações para a melhoria do sistema, evolução e permanência das bases constitucionais de justiça social.
Também ao INSS, importante órgão público federal e de relevante atuação no papel previdenciário do regime geral, o maior e mais englobante de todos, durante todo o ano que se encerra mostrou o que soa incontroverso há muito, quer seja, sua clara falência institucional.
Entre desmandos, mudanças abruptas na sua presidência, associa-se ao fato que diversos servidores da autarquia se licenciaram, se afastaram e se aposentaram, sem a contrapartida funcional que se aguardava, ou seja, novos concursos [3].
Assim, uma verdadeira bomba-relógio e apta para explodir a qualquer momento, o que já se vê pela expansiva judicialização previdenciária, cada vez mais evidenciada, mostrando que o sistema parou e nenhuma perspectiva há para seus próximos passos.
Em recente estudo encomendado pelo CNJ, em termos conclusivos apurou-se que:
“Ao apresentar as conclusões do estudo, o relatório alerta para o risco de a pandemia da Covid-19 agravar a situação da judicialização dos benefícios previdenciários e assistenciais. A partir das informações, a equipe de pesquisa do Insper considerou que a ampliação da demanda pelos benefícios previdenciários e assistenciais, dificuldades de coordenação entre as esferas administrativa e judicial, o desemprego em níveis mais altos e o constrangimento fiscal devem contribuir para a intensificar a judicialização” [4].
Ao que se percebe, os apontamentos de citado relatório se verificaram, e o agravamento do cenário ainda ocorre, aos olhos de todos e a indesejados passos largos.
De outro lado, pelo menos em uma perspectiva acadêmica otimista, prospectiva e saudável, em 2020 o Direito Previdenciário se consolidou, em definitivo, ainda que em tempos pandêmicos difíceis, complexos e tristes.
Em um ano pós-reforma diversos institutos, escolas especializadas, faculdades, universidades, enfim, propiciaram constantes debates acerca das mudanças eclodidas pela EC nº 103/2019, ratificando o sólido piso previdenciário no cenário nacional, alocando o Direito Previdenciário como um dos ramos do saber mais procurados entre os profissionais [5].
Não se sabe o que se reserva aos tempos vindouros, em específico no que se refere à causa previdenciária, contudo, esperança ainda resta para que os sonhos e a programação de outubro de 1988 se concretize e haja algum legado para ser deixado, registrado e comemorado, sempre em final de ano, à exceção de 2020.
Fonte: Conjur.