O Impacto da pandemia nas relações contratuais civis
O IMPACTO DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS CIVIS
Desde o final do ano de 2019 o mundo já havia tomado conhecimento acerca da existência e forma de propagação rápida do COVID-19, conhecido popularmente por coronavírus.
A China foi o primeiro país a sofrer com as consequências catastróficas que o COVID-19 trouxe, porém não conseguiu conter sua propagação e fez com que ele se espalhasse para outros países mundo afora.
Infelizmente ele chegou ao Brasil e, rapidamente, vem se propagando de maneira assustadora, fazendo a população do mundo inteiro viver um momento histórico.
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Com isso, surgiram algumas dúvidas pertinentes às relações contratuais e que merecem especial atenção.
O contrato deve ser entendido como uma obrigação assumida entre as partes, independente da forma que tenha se concretizado. Em regra, um contrato é feito para que seja cumprido e para que produza seus efeitos. Presume-se daí a boa-fé nas relações contratuais.
No entanto, o ordenamento jurídico brasileiro possui normas específicas que tem por finalidade regular as relações contratuais em momentos pontuais de crise, de forma a flexibilizar a rigidez do princípio “pacta sunt servanda” (os contratos devem ser cumpridos).
O direito brasileiro caracteriza esse estado de crise em três circunstâncias: teoria da onerosidade excessiva, teoria da imprevisão e caso fortuito ou força maior.
A Teoria da Imprevisão, ou Princípio da Revisão dos Contratos, trata da possibilidade de que um pacto seja alterado, a despeito da obrigatoriedade, sempre que as circunstâncias que envolveram a sua formação não forem as mesmas no momento da execução da obrigação contratual, de modo a prejudicar uma parte em benefício da outra.
A teoria da imprevisão está presente no Art. 317 do Código Civil, que assim estabelece:
“Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Entende-se com isso que diante extrema dificuldade para cumprimento dos contratos permite-se assim a revisão do valor das prestações contratuais.
No entanto, em decisões anteriores o STJ (Supremo Tribunal da Justiça) já havia firmado entendimento de que a alteração na realidade econômica não poderia ser classificada como um fato imprevisível. O que, acredita-se, a partir dessa pandemia possa se tornar uma questão que será levada para apreciação do judiciário.
O princípio da onerosidade excessiva ocorre “quando uma prestação de obrigação contratual se torna, no momento da execução, notavelmente mais gravosa do que era no momento em que surgiu”.(Orlando Gomes)
Os artigos 478 a 480 do Código Civil, que tratam da resolução por onerosidade excessiva, assim preceituam:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. (grifo nosso)
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Pela simples leitura do Art. 478, nos deixa evidente que se a obrigação contratual de uma das partes se tornar excessivamente onerosa em virtude de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, poderá o devedor da obrigação requerer a rescisão contratual. Tal rescisão poderá ser evitada (Arts. 479 e 480) caso as partes entrem em um consenso, deixando então de existir a onerosidade do contrato. O que no cenário atual, ante a pandemia, é sem sombra de dúvida a opção mais viável para ambos.
Em suma, diante da extrema dificuldade para o cumprimento do contrato, primeiramente, tenta-se a revisão contratual, não se descartando a hipótese de serem modificadas as cláusulas e condições contratuais e, caso não seja possível a revisão ocorre assim a rescisão do contrato.
A previsão legal (Art. 393, CC) de que o devedor não responde pelos prejuízos causados em decorrência de danos ocasionados por caso fortuito ou de força maior, salvo se por estes for responsabilizado tem causado instabilidade nas relações contratuais. Ou seja, a pandemia pode se enquadrar nos casos fortuitos ou de força maior?
Como não a legislação não faz distinção do que seria caso fortuito ou de força maior, ficou à cargo dos doutrinadores e juristas fazerem tal diferenciação. O que mesmo assim ainda causa muita confusão, pois existem divergências entre doutrinadores.
Para doutrinadores que seguem a escola de Álvaro Vilaça de Azevedo, o caso fortuito é o acontecimento provindo da natureza, sem qualquer intervenção da vontade humana; e a força maior é a atuação humana, não do devedor, que impossibilita o cumprimento obrigacional.
A Profa. Maria Helena Diniz entende o contrário, pois considera força maior o fato que decorre da força da natureza e o caso fortuito aquele que decorre de causa desconhecida.
Como no Brasil nunca nos deparamos com qualquer situação que se aproxime ou se assemelhe à pandemia do COVID-19, se considerarmos que não existe qualquer intervenção da vontade humana na propagação do vírus, é possível que estejamos de frente à caracterização de um caso fortuito.
Importante ressaltar que a simples alegação de que a obrigação não pode ser cumprida tendo em vista a pandemia não é justificativa para se exonerar de qualquer obrigação anteriormente assumida. Ou seja, deve-se comprovar a impossibilidade do cumprimento da obrigação, tudo devidamente justificado.
Além disso, é importante que seja verificada a duração e o impacto do caso fortuito ou força maior, não se esquecendo ainda que o contrato firmado entre as partes pode conter cláusula que regulamente essas situações.
Fato relevante é que a parte que se ver prejudicada nesse momento de crise devese valer de conceitos éticos e de boa-fé antes de alegar a aplicação de quaisquer desses institutos. Nada impede que contratante e contratado tentem adequar ao novo cenário que se desenha e juntos tracem novas regras para o contrato.
Tatiana Bicalho, gerente jurídica da Brugnara Advogados, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela ESA/MG -FUMEC.